Costume pode ter efeito de lei ao impor regras
Por Sacha Calmon
O direito é um sistema normativo cuja função é organizar as instituições do Estado e construir regras jurídicas sobre os comportamentos humanos, usando os modais deônticos: o obrigatório, o proibido e o facultativo. As normas sejam éticas, religiosas ou jurídicas, estão no mundo do dever-ser (o mundo deôntico) e as ciências do ser são regidas por normas ônticas (o mundo do ser ou seres). As normas ou leis do ser são descritivas. Exemplo: a água congela-se a zero grau centígrado e volatiliza-se a 100 graus. As leis do dever-ser, ao contrário, são prescritivas, ou seja, prescrevem que certas condutas são proibidas, facultativas ou obrigatórias. Exemplos: ter renda (hipótese), pagar imposto de renda (prescrição); contratar morar em casa alheia (hipótese), pagar aluguel (prescrição); furtar (hipótese), cumprir pena de três a quatro anos (prescrição). É obrigatório pagar o imposto de renda; é proibido furtar; é facultativo celebrar contrato de locação. Um mundo sem ciência e sem regras é impensável. Adiciona-se o trabalho (sobrevivência); o sexo (perpetuação da espécie) e a arte (idealização do real para o riso, a dor e o belo (tragédia, comédia, artes audiovisuais, poesia etc.). Seja lá como for, além da lei ou da sentença, o costume obriga ou cria comportamentos seguidos à risca. Os ex-presidentes norte-americanos, por exemplo, não se candidatam mais a nenhum cargo público. No Brasil, concorrem para o Senado e a governos estaduais.
Por Sacha Calmon
O direito é um sistema normativo cuja função é organizar as instituições do Estado e construir regras jurídicas sobre os comportamentos humanos, usando os modais deônticos: o obrigatório, o proibido e o facultativo. As normas sejam éticas, religiosas ou jurídicas, estão no mundo do dever-ser (o mundo deôntico) e as ciências do ser são regidas por normas ônticas (o mundo do ser ou seres). As normas ou leis do ser são descritivas. Exemplo: a água congela-se a zero grau centígrado e volatiliza-se a 100 graus. As leis do dever-ser, ao contrário, são prescritivas, ou seja, prescrevem que certas condutas são proibidas, facultativas ou obrigatórias. Exemplos: ter renda (hipótese), pagar imposto de renda (prescrição); contratar morar em casa alheia (hipótese), pagar aluguel (prescrição); furtar (hipótese), cumprir pena de três a quatro anos (prescrição). É obrigatório pagar o imposto de renda; é proibido furtar; é facultativo celebrar contrato de locação. Um mundo sem ciência e sem regras é impensável. Adiciona-se o trabalho (sobrevivência); o sexo (perpetuação da espécie) e a arte (idealização do real para o riso, a dor e o belo (tragédia, comédia, artes audiovisuais, poesia etc.). Seja lá como for, além da lei ou da sentença, o costume obriga ou cria comportamentos seguidos à risca. Os ex-presidentes norte-americanos, por exemplo, não se candidatam mais a nenhum cargo público. No Brasil, concorrem para o Senado e a governos estaduais.
A história de cada povo lhe dita as instruções.
A Inglaterra, a princípio, construiu o seu Direito a partir das sentenças dos seus julgadores (judge made law). Dado caso, uma vez sentenciado, tornava-se lei para os futuros casos iguais (common law). Os franceses, na época moderna, lideraram o direito legislado pelo Parlamento. O legislador prevê o caso e a solução hipoteticamente. Quando os fatos acontecem, o juiz aplica a lei abstrata aos casos concretos. Qual dos dois é o melhor sistema? Resposta: chegam ao mesmo ponto. Uma coleção de jurisprudência reiterada é igual a um código de leis.
No plano político, muito recentemente, tivemos um embate entre a lei e o costume. No Brasil, inexiste lei prescrevendo que o Banco Central seja autônomo. Na Argentina, existe. Cristina Kirchner demitiu o presidente do BC, o Judiciário anulou o ato, mas ele renunciou. A lei foi desrespeitada. O novo presidente do BC argentino curvou-se à Cesarina. Péssimo exemplo. Por primeiro deveria fazer votar lei subordinando o BC. No Brasil, entretanto, o presidente Lula trata o BC brasileiro como se lei houvesse firmando-lhe a autonomia. O melhor de tudo é o bom senso, o certo e não o errado, o útil em lugar da inutilidade. Melhor ainda é o estrito cumprimento da lei. Nós as temos das mais diversas ordens e, modéstia à parte, temos leis muito boas. Dá-se que o Poder Executivo empanturra o Judiciário (78% das demandas) nos tribunais superiores, com aquela parte ruim de leis confusas e inconstitucionais e atos ilegais. O Judiciário, enfartado, não funciona, mas leva a culpa. Os romanos sempre tiveram razão: “Muitas leis: péssima república” (plurimae leges pessima respublica).
Voltando à comparação entre o direito continental europeu e o common law, podemos dizer que a lei escrita em códigos se faz mais conhecida e sistemática, embora não consiga abranger a realidade, em sua multifacetada riqueza, ao passo que os books de jurisprudência possibilitam enquadrar os fatos, à medida que apareçam a suscitar a palavra dos juízes: casos iguais, idêntica solução. Caso novo, nova solução. Vão se estabelecendo os parâmetros dos cases. Um exemplo ilustrará o que ora digo. No Reino Unido, não há lei dizendo com que idade uma pessoa é responsável ou imputável penalmente para o fim de ser processada e, eventualmente, condenada, bastando entender o caráter criminoso dos seus atos, como furtar ou estuprar ou matar alguém.
No direito codificado, a lei fixa a idade da maioridade, que pode ser, dependendo do caso, 16 ou 18 ou 21 anos. Cá entre nós, recentemente, foi solto um adolescente de um Instituto de Recuperação de Menores que tinha praticado 12 homicídios dolosos entre 14 e 17 anos. E saiu com a ficha limpa. Era “de menor”. Na Inglaterra, pegaria prisão perpétua! Lá, procura-se saber se a pessoa é consciente e ademais perigosa, até mesmo se tiver 12 anos. (É caso por caso.) Em compensação os políticos eleitos, se corruptos, não perdem o cargo, ninguém os pode destituir, somente eles próprios. No momento, 190 deputados ingleses cometeram deslizes os mais diversos, apropriação de dinheiro público, financiamentos inexistentes, fictícias despesas pessoais, pagamento de prostitutas et caterva. O presidente da Câmara dos Comuns renunciou, a cambada ficou. Estão lá, mas se reelegerão? São os costumes. Cada roca com seu fuso, cada terra com o seu uso, diz o sábio brocardo lusitano.
[Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de Minas.]
A Inglaterra, a princípio, construiu o seu Direito a partir das sentenças dos seus julgadores (judge made law). Dado caso, uma vez sentenciado, tornava-se lei para os futuros casos iguais (common law). Os franceses, na época moderna, lideraram o direito legislado pelo Parlamento. O legislador prevê o caso e a solução hipoteticamente. Quando os fatos acontecem, o juiz aplica a lei abstrata aos casos concretos. Qual dos dois é o melhor sistema? Resposta: chegam ao mesmo ponto. Uma coleção de jurisprudência reiterada é igual a um código de leis.
No plano político, muito recentemente, tivemos um embate entre a lei e o costume. No Brasil, inexiste lei prescrevendo que o Banco Central seja autônomo. Na Argentina, existe. Cristina Kirchner demitiu o presidente do BC, o Judiciário anulou o ato, mas ele renunciou. A lei foi desrespeitada. O novo presidente do BC argentino curvou-se à Cesarina. Péssimo exemplo. Por primeiro deveria fazer votar lei subordinando o BC. No Brasil, entretanto, o presidente Lula trata o BC brasileiro como se lei houvesse firmando-lhe a autonomia. O melhor de tudo é o bom senso, o certo e não o errado, o útil em lugar da inutilidade. Melhor ainda é o estrito cumprimento da lei. Nós as temos das mais diversas ordens e, modéstia à parte, temos leis muito boas. Dá-se que o Poder Executivo empanturra o Judiciário (78% das demandas) nos tribunais superiores, com aquela parte ruim de leis confusas e inconstitucionais e atos ilegais. O Judiciário, enfartado, não funciona, mas leva a culpa. Os romanos sempre tiveram razão: “Muitas leis: péssima república” (plurimae leges pessima respublica).
Voltando à comparação entre o direito continental europeu e o common law, podemos dizer que a lei escrita em códigos se faz mais conhecida e sistemática, embora não consiga abranger a realidade, em sua multifacetada riqueza, ao passo que os books de jurisprudência possibilitam enquadrar os fatos, à medida que apareçam a suscitar a palavra dos juízes: casos iguais, idêntica solução. Caso novo, nova solução. Vão se estabelecendo os parâmetros dos cases. Um exemplo ilustrará o que ora digo. No Reino Unido, não há lei dizendo com que idade uma pessoa é responsável ou imputável penalmente para o fim de ser processada e, eventualmente, condenada, bastando entender o caráter criminoso dos seus atos, como furtar ou estuprar ou matar alguém.
No direito codificado, a lei fixa a idade da maioridade, que pode ser, dependendo do caso, 16 ou 18 ou 21 anos. Cá entre nós, recentemente, foi solto um adolescente de um Instituto de Recuperação de Menores que tinha praticado 12 homicídios dolosos entre 14 e 17 anos. E saiu com a ficha limpa. Era “de menor”. Na Inglaterra, pegaria prisão perpétua! Lá, procura-se saber se a pessoa é consciente e ademais perigosa, até mesmo se tiver 12 anos. (É caso por caso.) Em compensação os políticos eleitos, se corruptos, não perdem o cargo, ninguém os pode destituir, somente eles próprios. No momento, 190 deputados ingleses cometeram deslizes os mais diversos, apropriação de dinheiro público, financiamentos inexistentes, fictícias despesas pessoais, pagamento de prostitutas et caterva. O presidente da Câmara dos Comuns renunciou, a cambada ficou. Estão lá, mas se reelegerão? São os costumes. Cada roca com seu fuso, cada terra com o seu uso, diz o sábio brocardo lusitano.
[Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de Minas.]
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