Baseado em observações colhidas em situações limítrofes vividas pelos seres humanos ao longo da história, o psicólogo e sociólogo alemão Harald Welzer afirma que viveremos em uma situação delicada no século 21.
Com as transformações climáticas ocorridas nos últimos anos, e sem nenhum prognóstico de melhora, o especialista especula que, além das causas tradicionais das guerras --economia, religião, política-- teremos no clima um fator preponderante para futuros conflitos.
Com a falta de recursos naturais necessários para a sobrevivência e a ausência de governo, os homens tentem a uma regressão à barbárie e ao comportamento cruel.
Fenômenos sociais do gênero foram presenciados após os terremotos no Haiti e no Chile, além da selvageria vista depois da passagem do furacão Katrina em 2005, nos Estados Unidos.
O livro "Guerras Climáticas" é composto por ensaios escritos por Welzer. O volume apresenta perspectivas pouco animadoras sobre as mudanças do clima no planeta e, principalmente, sobre as reações prováveis do ser humano nesse período desastroso. Leia, abaixo, um trecho.
UM BARCO NO MEIO DO DESERTO: O PASSADO E O FUTURO DA VIOLÊNCIA
"Um leve tinir atrás de mim fez com que virasse a cabeça. Seis negros caminhavam em fila, percorrendo penosamente a senda estreita. Eles avançavam eretos e devagar, balançando pequenos cestos cheios de terra nas cabeças, e o ruído acompanhava cada um de seus passos. [...] Eu podia contar-lhes as costelas, as articulações de seus membros lembravam os nós de uma corda; cada um deles trazia uma golilha, um anel de ferro soldado ao redor do pescoço, todos interligados por uma corrente frouxa, cujos elos excedentes pendiam entre eles: era seu avanço compassado que fazia com que os elos tilintassem em um ritmo regular." Esta cena, descrita por Joseph Conrad em seu romance intitulado "O Coração das Trevas", descrevia a época de maior florescência do colonialismo europeu, distando dos dias de hoje pouco mais de cem anos.
A brutalidade impiedosa, com a qual os primeiros países industrializados buscavam satisfazer sua fome de matérias-primas, de terras e de poder, e que deixou as suas marcas sobre os demais continentes, não é mais aceita pelas condições vigentes nos países ocidentais. A memória da exploração, da escravidão e do extermínio tornou-se a vítima de uma amnésia democrática de que estão afetados todos os estados do Ocidente, que não querem recordar que sua riqueza, do mesmo modo que seu poderio e progresso, foram construídos ao longo de uma história mortífera.
Em vez disso, o que se encontra é um orgulho pela descoberta, observância e defesa dos direitos humanos, pela prática do politicamente correto, pela participação em atividades humanitárias, sempre que em algum lugar da África ou da Ásia uma guerra civil, uma inundação ou uma seca compromete as necessidades fundamentais de sobrevivência dos povos. Determinam-se intervenções militares para ampliar os domínios da democracia, esquecendo que a maioria das democracias ocidentais foi edificada sobre uma história de guerras de fronteiras, limpeza étnica e genocídios.
Enquanto se reescrevia a história assimétrica dos séculos 19 e 20 dentro das condições de vida confortáveis e mesmo luxuosas das sociedades ocidentais, muitos habitantes de países do segundo e do terceiro-mundo mal suportam ouvir falar em tal história, porque foram dominados violentamente através dela: poucos dos países pós-coloniais foram conduzidos a uma soberania estável, muito menos a condições de bem-estar social; em muitas dessas nações, a história da espoliação continua a ser escrita sob diferentes disfarces e, em numerosas sociedades frágeis, não se encontram hoje sinais de progresso, mas sim de maior regressão.
O aquecimento progressivo do clima, um produto da fome inextinguível por mais energia fóssil dominante nas terras que primeiro se industrializaram, prejudica com maior rigor as regiões mais pobres do mundo; uma amarga ironia, que escarnece toda a esperança de que a vida se possa tornar algum dia mais justa. A capa deste livro mostra o vapor "Eduard Bohlen", antigamente encarregado de serviços postais, cujos destroços permanecem há quase cem anos recobertos pela areia do deserto da Namíbia. Ele desempenhou um pequeno papel na história das grandes injustiças. A 5 de setembro de 1909, no meio do nevoeiro, o barco encalhou diante da costa do território que na época se denominava África do Sudoeste Alemã. Hoje em dia, os restos do navio se encontram duzentos metros terra adentro; durante o século transcorrido, o deserto se ampliou oceano adentro. O "Eduard Bohlen", que percorria desde 1891 a linha comercial oceânica da companhia Woermann, sediada em Hamburgo, regularmente transportava correspondência para a África do Sudoeste Alemã. Durante a guerra de extermínio travada pela administração colonial alemã contra as tribos Hereros e Namas, serviu ocasionalmente como navio negreiro.
Durante esta guerra genocida, travada no princípio do século 20, uma boa parte da população indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de concentração ou levada para campos de trabalhos forçados, em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como trabalhadores escravos. Bem no começo da guerra, a administração colonial alemã enviou a um comerciante sul-africano chamado Hewitt 282 prisioneiros, que foram alojados precariamente nos porões do "Eduard Bohlen", sem que lhes encontrassem melhores possibilidades de acomodação, e com os quais não se sabia exatamente o que fazer, enquanto os Hereros não fossem completamente derrotados. Hewitt fi cou entusiasmado com essa possibilidade e barganhou para que o preço fosse reduzido para 20 marcos por cabeça, com o argumento, considerado justo, de que os homens já estavam embarcados e ele não estava preparado para pagar pelas mercadorias despachadas o preço normal, além dos direitos alfandegários correspondentes. Ele obteve os prisioneiros em condições mais favoráveis e o "Eduard Bohlen" partiu do porto de Swakopmund, a 20 de janeiro de 1904, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde os homens foram enviados para trabalhar nas minas.
Na verdade, foram os Hereros que iniciaram a guerra contra a administração colonial alemã, durante a noite de 11 para 12 de janeiro de 1904, começando por destruir uma estrada de ferro e derrubar grande quantidade de postes telegráficos e continuando pelo massacre de surpresa de 123 trabalhadores alemães ainda adormecidos nas fazendas. Após algumas tentativas inúteis de apaziguamento da luta, o governo real de Berlim enviou o general-de-divisão Lothar von Trotha para comandar as tropas coloniais alemãs. Von Trotha adotou desde o início o conceito de uma guerra de extermínio, de acordo com o qual ele não procurou simplesmente vencer os Hereros por meios militares, mas os impeliu para o extermínio no deserto de Omaheke, onde ocupou todas as nascentes de água, provocando pura e simplesmente a morte de seus adversários pela sede. Esta estratégia foi tão bem-sucedida quanto fora cruel; foi relatado que os sedentos cortavam as gargantas de seus animais para beber-lhes o sangue e que finalmente esmagavam seus intestinos para deles retirar os últimos restos de umidade. Não obstante, acabaram morrendo.
Mas a guerra prosseguiu, mesmo depois de os Hereros terem sido aniquilados; determinou-se que os Namas, uma outra etnia, deveriam ser desarmados e subjugados enquanto as tropas alemãs ainda se encontrassem no território. Diferentemente dos Hereros, os Namas não ofereceram combate aberto, mas se limitaram a um combate de guerrilhas, que se tornou um grave problema para as tropas coloniais, que adotaram, por sua vez, uma estratégia diferente, a qual logo seria imitada com frequência ao longo do mortífero século 20: para retirar dos guerreiros os recursos sobre os quais se apoiavam, os alemães assassinaram as mulheres e filhos dos Namas ou os encerraram em campos de concentração.
A violência foi realizada sob a pressão das circunstâncias e produziu suas consequências. Estas permaneceram, originaram novos meios de aplicação da violência, que se foram tornando tanto mais amplos quanto mais efi cientes se demonstravam. Isto porque a violência é inovadora: ela gera novos meios e encontra novas proporções. As tropas coloniais alemãs, não obstante, tiveram de combater os Namas durante mais de três anos. Além disso, nem todos os campos de concentração permaneceram sob controle do governo; também empresários privados, como a empresa de linhas marítimas Woermann, estabeleceram seus próprios campos de trabalhos forçados.
Esta guerra de extermínio não foi somente um exemplo da impiedade da violência colonial, como um modelo para os genocídios futuros - por meio de seu propósito de total eliminação, cumprido pelo internamento nos campos estabelecidos, que significavam uma estratégia de extermínio por meio dos trabalhos forçados. Todos já ouvimos contar a história de suas consequências; o Departamento I dos escritórios do Estado-Maior, encarregado de redigir a história da guerra, escreveu orgulhosamente, em 1907, que "nenhum esforço, nenhuma privação" foram poupados "para que os inimigos fossem privados dos últimos vestígios de sua capacidade de resistência, pois metade deles foi morta nas regiões desérticas pela captura progressiva de todos os poços de água, até que, finalmente, sem mais energia, eles fossem sacrificados pela natureza de sua própria terra. O deserto sem água de Omaheke completou o que as armas alemãs haviam iniciado: a aniquilação da tribo dos Hereros." Isto se passou há cem anos; desde então, as formas de violência se modificaram, nem tanto em sua forma e aspecto, mas na maneira segundo a qual são referidas.
O Ocidente não costuma mais, salvo em casos excepcionais, empregar violência direta contra outros estados; as guerras são hoje empreendimentos realizados por longas cadeias de ação e numerosos atores, por meio dos quais a violência é delegada e se torna informe e invisível. As guerras do século 21 são pós-heroicas e apresentadas como sendo conduzidas de má-vontade pelas nações que as empreendem. E no que se refere ao orgulho nacional por ter sido alcançada a aniquilação de tribos selvagens... isto é coisa que, desde o holocausto dos judeus, se tornou impossível mencionar.
O "Eduard Bohlen" se enferruja hoje, semienterrado na areia do deserto da Namíbia e talvez tenha chegado o momento em que o modelo completo das sociedades ocidentais, com todas as suas conquistas de democracia, direitos humanos, liberdade, liberalidade, arte e cultura, sob o ponto de vista de um historiador do século 22, se demonstre tão irremediavelmente deslocado como nos parece hoje a visão do velho navio negreiro nadando no meio do deserto, um corpo estranho peculiar que dá a impressão de se ter originado em outro mundo. Isso no caso de ainda haver historiadores quando chegar o século 22.
Este modelo de sociedade, tão impiedosamente desenvolvido ao longo de uma guerra com a duração de um quarto de milênio, tornou-se agora dominante, em um piscar de olhos, no momento em que seu caminho vitorioso atingiu um alcance global, no qual até mesmo os países comunistas e aqueles que não eram exatamente comunistas foram incluídos, pela atração irresistível de padrões de vida em que os automóveis, as televisões, os computadores de tela plana e as longas viagens determinaram as novas fronteiras de sua atuação, produzindo consequências inesperadas que ninguém havia calculado. As emissões de gás carbônico que a fome de energia das indústrias e das administrações dos países de desenvolvimento descontrolado produzem em níveis progressivamente maiores ameaçam os ritmos normais de desenvolvimento do clima terrestre. Suas consequências já se tornaram visíveis, embora o futuro ainda seja imprevisível. Ainda mais claramente agora, quando se percebe que a utilização desmedida das fontes de energia fóssil não pode mais ser continuada indefinidamente, uma vez que o fim destas reservas pode ser esperado antes de muito tempo, já que o esgotamento de tais recursos é inevitável, devido ao desinteresse pelas consequências e o descontrole com que são queimados.
Mas não é somente porque as transformações climáticas causadas pelas emissões de gases poluentes e que já provocaram um aquecimento global médio da ordem de dois graus não pareçam mais poder ser controladas que o modelo ocidental já atingiu os seus limites, mas também porque uma forma de desenvolvimento globalizado que tenha por base o consumo incontido de recursos naturais não poderá funcionar como um princípio de abrangência mundial. Isto porque este modelo funcionou logicamente apenas enquanto o poder de uma parte do mundo acumulou o que foi desviado de outras partes; este modelo é particular e não universal - nem todos os países poderão segui-lo doravante. Enquanto a astronomia não nos oferecer planetas próximos o bastante que possam ser colonizados, chegamos à constatação desapontadora de que a Terra é apenas uma ilha. Não teremos mais para onde nos expandir, depois que as reservas tenham sido esgotadas e os campos de cultivo ocupados pela urbanização.
Agora que os recursos restantes claramente estão se esgotando, pelo menos em muitas regiões da África, da Ásia, da Europa Oriental, da América do Sul, do Ártico e das Ilhas do Pacífico, surge o problema de que cada vez mais pessoas encontrarão cada vez menores bases de segurança para sua sobrevivência. Está ao alcance de todos a constatação de que conflitos armados surgirão entre estes povos, para que eles possam se nutrir do cultivo das próprias terras e das de seus vizinhos ou porque queiram beber das fontes de água que progressivamente se esgotam em seus territórios ou nos territórios próximos; de forma semelhante, também se tornou visível para todos que as pessoas, dentro de um futuro previsível, não mais tenham mecanismos práticos de contenção dos refugiados de guerra e do meio ambiente, ao mesmo tempo que não se possam mais separar deles, porque cada vez mais novas guerras provocadas pela decadência ambiental surgirão e os povos fugirão para escapar às consequências da violência. Uma vez que eles terão de permanecer em algum lugar, darão origem a novas fontes de violência - em seus próprios países, onde não saberão o que fazer com os refugiados internos, ou nas fronteiras de outras terras que desejem atravessar, mas onde não serão desejados de qualquer maneira.
O objetivo deste livro é o de responder às questões provocadas pela maneira como o clima e a violência se inter-relacionam. Em alguns casos, como o da Guerra do Sudão, este relacionamento é direto e pode ser constatado de imediato. Em muitos outros contextos de violência presente ou futura - no caso das guerras civis, de conflitos permanentes, do terror, da imigração ilegal, das disputas fronteiriças, das agitações e revoltas - predomina uma ligação com as modificações climáticas e os conflitos ambientais de caráter apenas indireto, especialmente no sentido de que o aquecimento da temperatura provoca efeitos desiguais ao redor do globo, dependendo da densidade demográfica, da situação geográfica e das condições de vida, porque afeta as diversas sociedades de forma altamente diferenciada.
"Guerras Climáticas"
Com as transformações climáticas ocorridas nos últimos anos, e sem nenhum prognóstico de melhora, o especialista especula que, além das causas tradicionais das guerras --economia, religião, política-- teremos no clima um fator preponderante para futuros conflitos.
Com a falta de recursos naturais necessários para a sobrevivência e a ausência de governo, os homens tentem a uma regressão à barbárie e ao comportamento cruel.
Fenômenos sociais do gênero foram presenciados após os terremotos no Haiti e no Chile, além da selvageria vista depois da passagem do furacão Katrina em 2005, nos Estados Unidos.
O livro "Guerras Climáticas" é composto por ensaios escritos por Welzer. O volume apresenta perspectivas pouco animadoras sobre as mudanças do clima no planeta e, principalmente, sobre as reações prováveis do ser humano nesse período desastroso. Leia, abaixo, um trecho.
UM BARCO NO MEIO DO DESERTO: O PASSADO E O FUTURO DA VIOLÊNCIA
"Um leve tinir atrás de mim fez com que virasse a cabeça. Seis negros caminhavam em fila, percorrendo penosamente a senda estreita. Eles avançavam eretos e devagar, balançando pequenos cestos cheios de terra nas cabeças, e o ruído acompanhava cada um de seus passos. [...] Eu podia contar-lhes as costelas, as articulações de seus membros lembravam os nós de uma corda; cada um deles trazia uma golilha, um anel de ferro soldado ao redor do pescoço, todos interligados por uma corrente frouxa, cujos elos excedentes pendiam entre eles: era seu avanço compassado que fazia com que os elos tilintassem em um ritmo regular." Esta cena, descrita por Joseph Conrad em seu romance intitulado "O Coração das Trevas", descrevia a época de maior florescência do colonialismo europeu, distando dos dias de hoje pouco mais de cem anos.
A brutalidade impiedosa, com a qual os primeiros países industrializados buscavam satisfazer sua fome de matérias-primas, de terras e de poder, e que deixou as suas marcas sobre os demais continentes, não é mais aceita pelas condições vigentes nos países ocidentais. A memória da exploração, da escravidão e do extermínio tornou-se a vítima de uma amnésia democrática de que estão afetados todos os estados do Ocidente, que não querem recordar que sua riqueza, do mesmo modo que seu poderio e progresso, foram construídos ao longo de uma história mortífera.
Em vez disso, o que se encontra é um orgulho pela descoberta, observância e defesa dos direitos humanos, pela prática do politicamente correto, pela participação em atividades humanitárias, sempre que em algum lugar da África ou da Ásia uma guerra civil, uma inundação ou uma seca compromete as necessidades fundamentais de sobrevivência dos povos. Determinam-se intervenções militares para ampliar os domínios da democracia, esquecendo que a maioria das democracias ocidentais foi edificada sobre uma história de guerras de fronteiras, limpeza étnica e genocídios.
Enquanto se reescrevia a história assimétrica dos séculos 19 e 20 dentro das condições de vida confortáveis e mesmo luxuosas das sociedades ocidentais, muitos habitantes de países do segundo e do terceiro-mundo mal suportam ouvir falar em tal história, porque foram dominados violentamente através dela: poucos dos países pós-coloniais foram conduzidos a uma soberania estável, muito menos a condições de bem-estar social; em muitas dessas nações, a história da espoliação continua a ser escrita sob diferentes disfarces e, em numerosas sociedades frágeis, não se encontram hoje sinais de progresso, mas sim de maior regressão.
O aquecimento progressivo do clima, um produto da fome inextinguível por mais energia fóssil dominante nas terras que primeiro se industrializaram, prejudica com maior rigor as regiões mais pobres do mundo; uma amarga ironia, que escarnece toda a esperança de que a vida se possa tornar algum dia mais justa. A capa deste livro mostra o vapor "Eduard Bohlen", antigamente encarregado de serviços postais, cujos destroços permanecem há quase cem anos recobertos pela areia do deserto da Namíbia. Ele desempenhou um pequeno papel na história das grandes injustiças. A 5 de setembro de 1909, no meio do nevoeiro, o barco encalhou diante da costa do território que na época se denominava África do Sudoeste Alemã. Hoje em dia, os restos do navio se encontram duzentos metros terra adentro; durante o século transcorrido, o deserto se ampliou oceano adentro. O "Eduard Bohlen", que percorria desde 1891 a linha comercial oceânica da companhia Woermann, sediada em Hamburgo, regularmente transportava correspondência para a África do Sudoeste Alemã. Durante a guerra de extermínio travada pela administração colonial alemã contra as tribos Hereros e Namas, serviu ocasionalmente como navio negreiro.
Durante esta guerra genocida, travada no princípio do século 20, uma boa parte da população indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de concentração ou levada para campos de trabalhos forçados, em que os prisioneiros de guerra eram vendidos como trabalhadores escravos. Bem no começo da guerra, a administração colonial alemã enviou a um comerciante sul-africano chamado Hewitt 282 prisioneiros, que foram alojados precariamente nos porões do "Eduard Bohlen", sem que lhes encontrassem melhores possibilidades de acomodação, e com os quais não se sabia exatamente o que fazer, enquanto os Hereros não fossem completamente derrotados. Hewitt fi cou entusiasmado com essa possibilidade e barganhou para que o preço fosse reduzido para 20 marcos por cabeça, com o argumento, considerado justo, de que os homens já estavam embarcados e ele não estava preparado para pagar pelas mercadorias despachadas o preço normal, além dos direitos alfandegários correspondentes. Ele obteve os prisioneiros em condições mais favoráveis e o "Eduard Bohlen" partiu do porto de Swakopmund, a 20 de janeiro de 1904, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde os homens foram enviados para trabalhar nas minas.
Na verdade, foram os Hereros que iniciaram a guerra contra a administração colonial alemã, durante a noite de 11 para 12 de janeiro de 1904, começando por destruir uma estrada de ferro e derrubar grande quantidade de postes telegráficos e continuando pelo massacre de surpresa de 123 trabalhadores alemães ainda adormecidos nas fazendas. Após algumas tentativas inúteis de apaziguamento da luta, o governo real de Berlim enviou o general-de-divisão Lothar von Trotha para comandar as tropas coloniais alemãs. Von Trotha adotou desde o início o conceito de uma guerra de extermínio, de acordo com o qual ele não procurou simplesmente vencer os Hereros por meios militares, mas os impeliu para o extermínio no deserto de Omaheke, onde ocupou todas as nascentes de água, provocando pura e simplesmente a morte de seus adversários pela sede. Esta estratégia foi tão bem-sucedida quanto fora cruel; foi relatado que os sedentos cortavam as gargantas de seus animais para beber-lhes o sangue e que finalmente esmagavam seus intestinos para deles retirar os últimos restos de umidade. Não obstante, acabaram morrendo.
Mas a guerra prosseguiu, mesmo depois de os Hereros terem sido aniquilados; determinou-se que os Namas, uma outra etnia, deveriam ser desarmados e subjugados enquanto as tropas alemãs ainda se encontrassem no território. Diferentemente dos Hereros, os Namas não ofereceram combate aberto, mas se limitaram a um combate de guerrilhas, que se tornou um grave problema para as tropas coloniais, que adotaram, por sua vez, uma estratégia diferente, a qual logo seria imitada com frequência ao longo do mortífero século 20: para retirar dos guerreiros os recursos sobre os quais se apoiavam, os alemães assassinaram as mulheres e filhos dos Namas ou os encerraram em campos de concentração.
A violência foi realizada sob a pressão das circunstâncias e produziu suas consequências. Estas permaneceram, originaram novos meios de aplicação da violência, que se foram tornando tanto mais amplos quanto mais efi cientes se demonstravam. Isto porque a violência é inovadora: ela gera novos meios e encontra novas proporções. As tropas coloniais alemãs, não obstante, tiveram de combater os Namas durante mais de três anos. Além disso, nem todos os campos de concentração permaneceram sob controle do governo; também empresários privados, como a empresa de linhas marítimas Woermann, estabeleceram seus próprios campos de trabalhos forçados.
Esta guerra de extermínio não foi somente um exemplo da impiedade da violência colonial, como um modelo para os genocídios futuros - por meio de seu propósito de total eliminação, cumprido pelo internamento nos campos estabelecidos, que significavam uma estratégia de extermínio por meio dos trabalhos forçados. Todos já ouvimos contar a história de suas consequências; o Departamento I dos escritórios do Estado-Maior, encarregado de redigir a história da guerra, escreveu orgulhosamente, em 1907, que "nenhum esforço, nenhuma privação" foram poupados "para que os inimigos fossem privados dos últimos vestígios de sua capacidade de resistência, pois metade deles foi morta nas regiões desérticas pela captura progressiva de todos os poços de água, até que, finalmente, sem mais energia, eles fossem sacrificados pela natureza de sua própria terra. O deserto sem água de Omaheke completou o que as armas alemãs haviam iniciado: a aniquilação da tribo dos Hereros." Isto se passou há cem anos; desde então, as formas de violência se modificaram, nem tanto em sua forma e aspecto, mas na maneira segundo a qual são referidas.
O Ocidente não costuma mais, salvo em casos excepcionais, empregar violência direta contra outros estados; as guerras são hoje empreendimentos realizados por longas cadeias de ação e numerosos atores, por meio dos quais a violência é delegada e se torna informe e invisível. As guerras do século 21 são pós-heroicas e apresentadas como sendo conduzidas de má-vontade pelas nações que as empreendem. E no que se refere ao orgulho nacional por ter sido alcançada a aniquilação de tribos selvagens... isto é coisa que, desde o holocausto dos judeus, se tornou impossível mencionar.
O "Eduard Bohlen" se enferruja hoje, semienterrado na areia do deserto da Namíbia e talvez tenha chegado o momento em que o modelo completo das sociedades ocidentais, com todas as suas conquistas de democracia, direitos humanos, liberdade, liberalidade, arte e cultura, sob o ponto de vista de um historiador do século 22, se demonstre tão irremediavelmente deslocado como nos parece hoje a visão do velho navio negreiro nadando no meio do deserto, um corpo estranho peculiar que dá a impressão de se ter originado em outro mundo. Isso no caso de ainda haver historiadores quando chegar o século 22.
Este modelo de sociedade, tão impiedosamente desenvolvido ao longo de uma guerra com a duração de um quarto de milênio, tornou-se agora dominante, em um piscar de olhos, no momento em que seu caminho vitorioso atingiu um alcance global, no qual até mesmo os países comunistas e aqueles que não eram exatamente comunistas foram incluídos, pela atração irresistível de padrões de vida em que os automóveis, as televisões, os computadores de tela plana e as longas viagens determinaram as novas fronteiras de sua atuação, produzindo consequências inesperadas que ninguém havia calculado. As emissões de gás carbônico que a fome de energia das indústrias e das administrações dos países de desenvolvimento descontrolado produzem em níveis progressivamente maiores ameaçam os ritmos normais de desenvolvimento do clima terrestre. Suas consequências já se tornaram visíveis, embora o futuro ainda seja imprevisível. Ainda mais claramente agora, quando se percebe que a utilização desmedida das fontes de energia fóssil não pode mais ser continuada indefinidamente, uma vez que o fim destas reservas pode ser esperado antes de muito tempo, já que o esgotamento de tais recursos é inevitável, devido ao desinteresse pelas consequências e o descontrole com que são queimados.
Mas não é somente porque as transformações climáticas causadas pelas emissões de gases poluentes e que já provocaram um aquecimento global médio da ordem de dois graus não pareçam mais poder ser controladas que o modelo ocidental já atingiu os seus limites, mas também porque uma forma de desenvolvimento globalizado que tenha por base o consumo incontido de recursos naturais não poderá funcionar como um princípio de abrangência mundial. Isto porque este modelo funcionou logicamente apenas enquanto o poder de uma parte do mundo acumulou o que foi desviado de outras partes; este modelo é particular e não universal - nem todos os países poderão segui-lo doravante. Enquanto a astronomia não nos oferecer planetas próximos o bastante que possam ser colonizados, chegamos à constatação desapontadora de que a Terra é apenas uma ilha. Não teremos mais para onde nos expandir, depois que as reservas tenham sido esgotadas e os campos de cultivo ocupados pela urbanização.
Agora que os recursos restantes claramente estão se esgotando, pelo menos em muitas regiões da África, da Ásia, da Europa Oriental, da América do Sul, do Ártico e das Ilhas do Pacífico, surge o problema de que cada vez mais pessoas encontrarão cada vez menores bases de segurança para sua sobrevivência. Está ao alcance de todos a constatação de que conflitos armados surgirão entre estes povos, para que eles possam se nutrir do cultivo das próprias terras e das de seus vizinhos ou porque queiram beber das fontes de água que progressivamente se esgotam em seus territórios ou nos territórios próximos; de forma semelhante, também se tornou visível para todos que as pessoas, dentro de um futuro previsível, não mais tenham mecanismos práticos de contenção dos refugiados de guerra e do meio ambiente, ao mesmo tempo que não se possam mais separar deles, porque cada vez mais novas guerras provocadas pela decadência ambiental surgirão e os povos fugirão para escapar às consequências da violência. Uma vez que eles terão de permanecer em algum lugar, darão origem a novas fontes de violência - em seus próprios países, onde não saberão o que fazer com os refugiados internos, ou nas fronteiras de outras terras que desejem atravessar, mas onde não serão desejados de qualquer maneira.
O objetivo deste livro é o de responder às questões provocadas pela maneira como o clima e a violência se inter-relacionam. Em alguns casos, como o da Guerra do Sudão, este relacionamento é direto e pode ser constatado de imediato. Em muitos outros contextos de violência presente ou futura - no caso das guerras civis, de conflitos permanentes, do terror, da imigração ilegal, das disputas fronteiriças, das agitações e revoltas - predomina uma ligação com as modificações climáticas e os conflitos ambientais de caráter apenas indireto, especialmente no sentido de que o aquecimento da temperatura provoca efeitos desiguais ao redor do globo, dependendo da densidade demográfica, da situação geográfica e das condições de vida, porque afeta as diversas sociedades de forma altamente diferenciada.
"Guerras Climáticas"
Autor: Harald WelzerEditora: Geração Editorial
Páginas: 314
Quanto: R$ 34,90
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