Texto de Hamilton Garcia de Lima
O PT nasceu como todos sabem, sob o signo da novidade, na esteira do ocaso do comunismo, um ocaso representado pelo movimento polonês Solidariedade. O sentido dessa novidade, todavia, foi difícil de determinar desde seu aparecimento, no final dos anos 1970, quando o novo grevismo operário, livre da tutela das vanguardas revolucionárias, possibilitou a união de variadas forças sociais e ideológicas, inclusive os sobreviventes da aventura guerrilheira, em um novo partido socialista nascido das lutas populares e não das pugnas internas da esquerda.
A dificuldade de caracterizar o PT ficou plasmada nas estratégias de inimigos e adversários da época empenhados em enfrentar o problema. Os militares, visando fracionar o MDB, que se encorpava ameaçando o controle da transição em curso, viram no PT a possibilidade de neutralizar a histórica influência comunista sobre os setores populares e, com isso, de quebra, impedir que os emedebistas ampliassem sua base de apoio.
Sob essa perspectiva, espaços políticos generosos foram cedidos ao novo grupo emergente em contraste com o relativo cerco aos comunistas na mesma ocasião. Enquanto o PT despontava em 1979 em reuniões públicas, as lideranças históricas do PCB mal voltavam do exílio ou saíam da clandestinidade, e, quando ele enfrentava sua segunda eleição, em 1982, os comunistas, que tiveram seu registro partidário negado, assistiam à prisão pela PF de suas principais lideranças reunidas no VII Congresso em SP. No mesmo período, no plano sindical, Lula consolidava seu grupo na liderança dos metalúrgicos de São Bernardo, enquanto Frei Chico, seu irmão comunista, continuava impedido de assumir a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano por conta de interdições judiciais e manobras de pelegos ligados ao governo. Assim, o PT ganhou tempo e espaço para roubar terreno ao inimigo ideológico do regime, desempenhando o papel de partido de direitos, cujas lideranças, sindicalistas pragmáticos de formação católica momentaneamente radicalizada, manifestavam profundo desprezo pelos ícones do movimento comunista internacional.
De outro lado, o PCB, olhando para o PT, fazia a previsão oposta à dos militares, temendo que o radicalismo corporativo dos sindicalistas do ABC paulista, em contato com os comunistas dissidentes, se transformasse, tal como nas greves de 1967-1968, em radicalismo político capaz de provocar retrocessos nos avanços democráticos até então obtidos. Por essa ótica, a estratégia militar de deixar o caminho aberto aos petistas e manter as barreiras aos comunistas era vista como uma forma sutil de recuar na própria redemocratização, atiçando a ala dura do regime por meio dos “novos radicais”. Os comunistas, a essa altura, escaldados por inúmeras derrotas políticas históricas motivadas por precipitações voluntaristas, se esforçavam mais para conter o avanço do PT na direção do confronto com o regime do que para disputar suas bases, apostando que o sectarismo político da jovem agremiação não a levaria muito longe e que o PCB se tornaria o estuário natural da nova esquerda desencantada — expectativa que já havia sido esboçada no final dos anos 60 diante do romantismo guerrilheiro de seus dissidentes.
O prognóstico militar acabou se mostrando mais factível do que o comunista, não obstante sua pouca utilidade para o regime: cinco eleições depois de sua fundação, o PT, em 1988, já era um partido eleitoral em ascensão que, subterraneamente, começava a fazer uso de esquemas “pragmáticos” de financiamento de campanha — inicialmente com base em práticas sindicais (vide Paulo Venceslau, 2005) —, enquanto os comunistas estavam em vias de se tornar uma força política e socialmente marginal.
O acerto dos militares parece derivar tanto de uma análise escrupulosa do perfil de Lula — que contou, inclusive, com entrevista presencial, por um emissário de Golbery, quando de sua prisão em 1980 (vide Mino Carta, 2010) — como também do papel da esquerda no projeto petista. De fato, o desenvolvimento do PT deve muito ao líder pragmático e intuitivo que soube liderar as mais importantes greves operárias desde 1967, mas ele não teria sido possível sem o concurso da esquerda.
Avesso à higiene intelectual dos comunistas, com sua inexorável tendência à reflexão (ou catilinária) teórica e relativa rigidez ética — vide stalinismo —, Lula teve papel decisivo ao decidir construir um partido político que renovasse radicalmente não apenas a política nacional, mas também a própria tradição da esquerda no país, usando para tal as forças disponíveis naquele momento — muitas delas fazendo parte daquilo que procurava superar. De início, a tônica do novo partido pareceu derivar mais da radicalidade de esquerda do que da sindical de resultados, mas isso, olhando-se retrospectivamente, fazia parte do custo de oportunidade de sua criação, não constituindo sua verdadeira alma.
Hoje fica claro que Lula não só não foi engolido pela lógica comunista — como vociferam seus inimigos à direita —, como desenvolveu, ao longo de sua carreira pública, um raro tirocínio político vocacionado para o exercício do poder sem pretensões revolucionárias e tendentes a um pragmatismo de tipo conservador, avesso a manobras arriscadas em nome de utopias. Habilmente, flertou com utopias socialistas sem muito se aprofundar nelas, visando mais unir os setores progressistas em torno de si e viabilizar o partido do que verdadeiramente sustentar um programa que não emanava de sua mente. A tolerância à receita esquerdista de luta pelo poder pela via do confronto e da oposição sistemática a governos democraticamente eleitos, com base em alianças puramente de esquerda, só persistiu até a consolidação do partido, em detrimento, a um só tempo, de comunistas e brizolistas — quase todos devidamente absorvidos à medida do fracasso de seus líderes e organizações. O esgotamento gradual da fórmula de esquerda, que coincide com o esgarçamento do comunismo internacional e a dispersão da esquerda ortodoxa, mesmo no interior do PT, encorajou Lula e seu grupo a assumir, crescentemente, um caminho próprio sem grandes riscos de dilaceramento de sua base esquerdista de apoio.
Os inimigos internos do lulismo foram, para felicidade das lideranças pragmáticas, se enfraquecendo também junto com o apelo das “bravatas oposicionistas” e do “principismo partidário” — “principismo você faz no partido quando pensa que não vai ganhar as eleições nunca” (Lula, 2007) —, que, de combustível do petismo nos anos 1980, se tornaram amarras para o lulismo nos anos 1990. Nesse percurso amadureceu em Lula a convicção dos estrategistas militares de outrora de que o PT ou seria um partido de massa contra a lógica da esquerda ortodoxa ou, sob o domínio dela, não passaria de um aguerrido agrupamento oposicionista limitado ao voto dos setores radicalizados, como de resto foi o caso dos PCs mundo afora (vide Lavau). Enquanto Lula e seu grupo traziam essa percepção de seu berço sindical, importantes elementos da esquerda ortodoxa — em particular seus setores marcadamente stalinistas — o desenvolveriam a partir da experiência dos movimentos armados do final dos anos 1960, quando o isolamento político foi pago em mortes e torturas.
O pacto petista, assim, não nasceu da simples lucubração de lideranças, mas de uma convergência efetiva de trajetórias diferenciadas cujo ponto de contato foi o realismo político, salpicado de bravatas sindicaleiras e principismos esquerdistas que compuseram a tônica do petismo até as vésperas das eleições de 2002. Além disso, havia plena consciência da interdependência entre esses dois principais grupos. De um lado, Lula e seus pares sindicalistas sabiam que seria incapaz de construir um partido nacional competitivo sem o concurso de quadros letrados, formados na arte da retórica e da organização pluriclassista, enquanto, de outro lado, os ortodoxos de esquerda, quase todos oriundos da classe média, sabiam da necessidade de estarem colados às novas lideranças operárias, tanto para lhes incutir uma consciência de classe política como para ampliar a base de massas de suas organizações de vanguarda. Entre os grupos de esquerda que melhor operaram essa estratégica se destaca o liderado por José Dirceu, quadro guerrilheiro mais conhecido pela capacidade política de organização e articulação do que pela formulação teórico-programática, e cujo mérito, sob esse ponto de vista, residiu, precisamente, em reconhecer a centralidade de Lula mais do que sua precariedade ideológica, estabelecendo com ele, dessa forma, uma relação “carnal” de grande intensidade e confiabilidade.
Interessante notar que Lula e seu grupo, embora cônscios de sua centralidade no jogo político partidário e não partidário — mas nem por isso iludidos por algum tipo de autossuficiência —, foram capazes de construir tal pacto interno confiando à esquerda um papel, a princípio, de grande destaque, apesar de seu limitado alcance eleitoral. Isso se deve ao modo como na história da esquerda brasileira a repressão impediu o acesso do proletariado ao mundo político e como isso foi compensado pela forma tutelada de participação via PTB. Assim, de olho na viabilidade de seu projeto de poder, Lula apoiou-se numa esquerda que, mesmo em declínio e dotada de um discurso oposicionista anacrônico e relativamente despreparada para o jogo democrático — basta ver o sectarismo golpista da política petista “fora FHC!” depois de sua reeleição —, se mostrava ativa e dedicada ao projeto petista, que, afinal, a arrancara do gueto dos pequenos grupos de pregação.
O modo como dirigiram os embates internos e externos (eleitorais) credenciou os pragmáticos à liderança sobre o partido, mesmo sob o manto do discurso esquerdista que parecia apontar para o desenlace oposto. Ao contrário da tradição de esquerda, Lula não aparecia comprometido com um programa particular, embora compusesse uma tendência específica interna, preferindo figurar como um democrata disposto a chancelar decisões coletivas e a manter a unidade partidária acima de tudo, evitando se colocar como efetivo chefe de partido — tarefa inglória em nossa tradição política — e delegando esse encargo a líderes de máquinas, como Dirceu, o que lhe possibilitou encarnar ainda mais eficazmente o papel de liderança de massas e pacificador interno.
O mesmo ocorreria no plano eleitoral. Já em 1989, o sectarismo antipeemedebista dos ortodoxos, que lhe roubaria preciosos votos no segundo turno contra Collor e lhe arranharia a imagem de líder político maduro, foi absorvido, assim como a retórica programática radical, bravatista e principista, como manifestação espontânea das bases partidárias, reforçando a imagem do líder democrático e tolerante que respeita a vontade dos militantes — o que hoje se constitui num ponto forte de sua imagem pública, apesar da imposição da candidatura presidencial ao partido.
Na eleição de 1994, a espetacular derrota sofrida de virada para FHC só aumentaria a sensação de descolamento do partido diante da realidade, sem que, então, sequer isso pudesse se converter em alguma vantagem à imagem política do líder. Sob os auspícios de seus economistas, que em sua maioria atacavam o Plano Real, os petistas persistiram na lógica da denúncia genérica contra o neoliberalismo e os planos econômicos anteriores, sem atentar para o amadurecimento de seus formuladores, sobretudo em relação ao Cruzado, e sem superar a miopia da esquerda dos anos 1960 que desprezava o tema da inflação em proveito do da inclusão, desconsiderando a complexa ligação entre ambos. De novo, sem melindrar a maioria partidária, Lula, apesar de perceber que o Real era um sucesso de público e que a maioria do eleitorado estava longe de entender os riscos macroeconômicos que ele embutia em termos de desindustrialização e aumento da dependência do país frente ao estrangeiro, tratou de tocar a campanha, mesmo amainando seu tom, provando sua capacidade de líder partidário “fiel às bases”.
O limite dessa estratégia amadureceria apenas após a segunda derrota cabal no primeiro turno para FHC, em 1998, quando Lula e seu grupo se convenceram de que o partido devia mudar de rumo e romper com o radicalismo político e sua tendência à resistência estéril ao sistema com base em axiomas doutrinários que, para além de sua não rara inconsistência teórica, eram pura e simplesmente incompreensíveis ao eleitor médio do país. Essa tomada de posição vem a público já no debate do II Congresso (novembro de 1999) através de Luiz Marinho, sob o argumento de que a unidade do partido não poderia mais ser garantida em detrimento de uma estratégia adequada de conquista do poder. O caminho para a Carta ao povo brasileiro (2002), na qual Lula admitiu, contra a retórica histórica do partido, a necessidade de acordos políticos e a continuidade dos programas bem-sucedidos dos governos anteriores, sobretudo o Real, estava aberto. O cálculo de oportunidade envolvido nessa opção se mostrou fundamental para a vitória de 2002, inaugurando, a partir de então, uma mudança importante na polaridade do pacto petista, agora baseado na supremacia da intuição dos pragmáticos sobre o discurso dos ortodoxos.
Desse modo, fica claro que a disjuntiva petismo x lulismo é inadequada para descrever a história do PT, sendo melhor utilizarmos a dicotomia lulismo x esquerdismo para entendermos as disputas em torno do projeto petista de poder, de modo a reconhecer tanto a legitimidade do petismo lulista quanto a importância da relação siamesa que este engendrou com a esquerda ortodoxa que vertebrou o PT, relação esta que está na base de todas as conquistas importantes do partido desde sua fundação.
O êxito inequívoco dessa trajetória, pelo menos em termos de conquista do poder político, deixa pouca margem para se esperar o fim do pacto petista por iniciativa de uma esquerda politicamente enfraquecida e ideologicamente esvaziada. Se o pragmatismo conservador de Lula, fadado a brilhar sobre o cenário político nacional, como líder da oposição ou da situação, não parece inclinado a uma fusão com as forças de centro, também o cenário desenhado por FHC, na hipótese do PT vitorioso, de um protagonismo independente de Dilma — numa espécie de reencarnação do Leonel Brizola dos anos 1960 — parece improvável à luz da unidade granítica do petismo e diante de um Lula, tal como um Vargas, ainda vivo, embora seja interessante como peça publicitária da campanha petista, visando, tal como em 2006, atrair o voto progressista.
Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do Lesce/UENF.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
Av. Barão do Rio Branco, 2390 - Centro - 36.016-310 - Juiz de Fora - MG - Fone: (32)2101-2000 (32)3691-7000
Hamilton Garcia (Sociólogo e Cientista Político)
•Gramsci-> www.gramsci.org
O PT nasceu como todos sabem, sob o signo da novidade, na esteira do ocaso do comunismo, um ocaso representado pelo movimento polonês Solidariedade. O sentido dessa novidade, todavia, foi difícil de determinar desde seu aparecimento, no final dos anos 1970, quando o novo grevismo operário, livre da tutela das vanguardas revolucionárias, possibilitou a união de variadas forças sociais e ideológicas, inclusive os sobreviventes da aventura guerrilheira, em um novo partido socialista nascido das lutas populares e não das pugnas internas da esquerda.
A dificuldade de caracterizar o PT ficou plasmada nas estratégias de inimigos e adversários da época empenhados em enfrentar o problema. Os militares, visando fracionar o MDB, que se encorpava ameaçando o controle da transição em curso, viram no PT a possibilidade de neutralizar a histórica influência comunista sobre os setores populares e, com isso, de quebra, impedir que os emedebistas ampliassem sua base de apoio.
Sob essa perspectiva, espaços políticos generosos foram cedidos ao novo grupo emergente em contraste com o relativo cerco aos comunistas na mesma ocasião. Enquanto o PT despontava em 1979 em reuniões públicas, as lideranças históricas do PCB mal voltavam do exílio ou saíam da clandestinidade, e, quando ele enfrentava sua segunda eleição, em 1982, os comunistas, que tiveram seu registro partidário negado, assistiam à prisão pela PF de suas principais lideranças reunidas no VII Congresso em SP. No mesmo período, no plano sindical, Lula consolidava seu grupo na liderança dos metalúrgicos de São Bernardo, enquanto Frei Chico, seu irmão comunista, continuava impedido de assumir a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano por conta de interdições judiciais e manobras de pelegos ligados ao governo. Assim, o PT ganhou tempo e espaço para roubar terreno ao inimigo ideológico do regime, desempenhando o papel de partido de direitos, cujas lideranças, sindicalistas pragmáticos de formação católica momentaneamente radicalizada, manifestavam profundo desprezo pelos ícones do movimento comunista internacional.
De outro lado, o PCB, olhando para o PT, fazia a previsão oposta à dos militares, temendo que o radicalismo corporativo dos sindicalistas do ABC paulista, em contato com os comunistas dissidentes, se transformasse, tal como nas greves de 1967-1968, em radicalismo político capaz de provocar retrocessos nos avanços democráticos até então obtidos. Por essa ótica, a estratégia militar de deixar o caminho aberto aos petistas e manter as barreiras aos comunistas era vista como uma forma sutil de recuar na própria redemocratização, atiçando a ala dura do regime por meio dos “novos radicais”. Os comunistas, a essa altura, escaldados por inúmeras derrotas políticas históricas motivadas por precipitações voluntaristas, se esforçavam mais para conter o avanço do PT na direção do confronto com o regime do que para disputar suas bases, apostando que o sectarismo político da jovem agremiação não a levaria muito longe e que o PCB se tornaria o estuário natural da nova esquerda desencantada — expectativa que já havia sido esboçada no final dos anos 60 diante do romantismo guerrilheiro de seus dissidentes.
O prognóstico militar acabou se mostrando mais factível do que o comunista, não obstante sua pouca utilidade para o regime: cinco eleições depois de sua fundação, o PT, em 1988, já era um partido eleitoral em ascensão que, subterraneamente, começava a fazer uso de esquemas “pragmáticos” de financiamento de campanha — inicialmente com base em práticas sindicais (vide Paulo Venceslau, 2005) —, enquanto os comunistas estavam em vias de se tornar uma força política e socialmente marginal.
O acerto dos militares parece derivar tanto de uma análise escrupulosa do perfil de Lula — que contou, inclusive, com entrevista presencial, por um emissário de Golbery, quando de sua prisão em 1980 (vide Mino Carta, 2010) — como também do papel da esquerda no projeto petista. De fato, o desenvolvimento do PT deve muito ao líder pragmático e intuitivo que soube liderar as mais importantes greves operárias desde 1967, mas ele não teria sido possível sem o concurso da esquerda.
Avesso à higiene intelectual dos comunistas, com sua inexorável tendência à reflexão (ou catilinária) teórica e relativa rigidez ética — vide stalinismo —, Lula teve papel decisivo ao decidir construir um partido político que renovasse radicalmente não apenas a política nacional, mas também a própria tradição da esquerda no país, usando para tal as forças disponíveis naquele momento — muitas delas fazendo parte daquilo que procurava superar. De início, a tônica do novo partido pareceu derivar mais da radicalidade de esquerda do que da sindical de resultados, mas isso, olhando-se retrospectivamente, fazia parte do custo de oportunidade de sua criação, não constituindo sua verdadeira alma.
Hoje fica claro que Lula não só não foi engolido pela lógica comunista — como vociferam seus inimigos à direita —, como desenvolveu, ao longo de sua carreira pública, um raro tirocínio político vocacionado para o exercício do poder sem pretensões revolucionárias e tendentes a um pragmatismo de tipo conservador, avesso a manobras arriscadas em nome de utopias. Habilmente, flertou com utopias socialistas sem muito se aprofundar nelas, visando mais unir os setores progressistas em torno de si e viabilizar o partido do que verdadeiramente sustentar um programa que não emanava de sua mente. A tolerância à receita esquerdista de luta pelo poder pela via do confronto e da oposição sistemática a governos democraticamente eleitos, com base em alianças puramente de esquerda, só persistiu até a consolidação do partido, em detrimento, a um só tempo, de comunistas e brizolistas — quase todos devidamente absorvidos à medida do fracasso de seus líderes e organizações. O esgotamento gradual da fórmula de esquerda, que coincide com o esgarçamento do comunismo internacional e a dispersão da esquerda ortodoxa, mesmo no interior do PT, encorajou Lula e seu grupo a assumir, crescentemente, um caminho próprio sem grandes riscos de dilaceramento de sua base esquerdista de apoio.
Os inimigos internos do lulismo foram, para felicidade das lideranças pragmáticas, se enfraquecendo também junto com o apelo das “bravatas oposicionistas” e do “principismo partidário” — “principismo você faz no partido quando pensa que não vai ganhar as eleições nunca” (Lula, 2007) —, que, de combustível do petismo nos anos 1980, se tornaram amarras para o lulismo nos anos 1990. Nesse percurso amadureceu em Lula a convicção dos estrategistas militares de outrora de que o PT ou seria um partido de massa contra a lógica da esquerda ortodoxa ou, sob o domínio dela, não passaria de um aguerrido agrupamento oposicionista limitado ao voto dos setores radicalizados, como de resto foi o caso dos PCs mundo afora (vide Lavau). Enquanto Lula e seu grupo traziam essa percepção de seu berço sindical, importantes elementos da esquerda ortodoxa — em particular seus setores marcadamente stalinistas — o desenvolveriam a partir da experiência dos movimentos armados do final dos anos 1960, quando o isolamento político foi pago em mortes e torturas.
O pacto petista, assim, não nasceu da simples lucubração de lideranças, mas de uma convergência efetiva de trajetórias diferenciadas cujo ponto de contato foi o realismo político, salpicado de bravatas sindicaleiras e principismos esquerdistas que compuseram a tônica do petismo até as vésperas das eleições de 2002. Além disso, havia plena consciência da interdependência entre esses dois principais grupos. De um lado, Lula e seus pares sindicalistas sabiam que seria incapaz de construir um partido nacional competitivo sem o concurso de quadros letrados, formados na arte da retórica e da organização pluriclassista, enquanto, de outro lado, os ortodoxos de esquerda, quase todos oriundos da classe média, sabiam da necessidade de estarem colados às novas lideranças operárias, tanto para lhes incutir uma consciência de classe política como para ampliar a base de massas de suas organizações de vanguarda. Entre os grupos de esquerda que melhor operaram essa estratégica se destaca o liderado por José Dirceu, quadro guerrilheiro mais conhecido pela capacidade política de organização e articulação do que pela formulação teórico-programática, e cujo mérito, sob esse ponto de vista, residiu, precisamente, em reconhecer a centralidade de Lula mais do que sua precariedade ideológica, estabelecendo com ele, dessa forma, uma relação “carnal” de grande intensidade e confiabilidade.
Interessante notar que Lula e seu grupo, embora cônscios de sua centralidade no jogo político partidário e não partidário — mas nem por isso iludidos por algum tipo de autossuficiência —, foram capazes de construir tal pacto interno confiando à esquerda um papel, a princípio, de grande destaque, apesar de seu limitado alcance eleitoral. Isso se deve ao modo como na história da esquerda brasileira a repressão impediu o acesso do proletariado ao mundo político e como isso foi compensado pela forma tutelada de participação via PTB. Assim, de olho na viabilidade de seu projeto de poder, Lula apoiou-se numa esquerda que, mesmo em declínio e dotada de um discurso oposicionista anacrônico e relativamente despreparada para o jogo democrático — basta ver o sectarismo golpista da política petista “fora FHC!” depois de sua reeleição —, se mostrava ativa e dedicada ao projeto petista, que, afinal, a arrancara do gueto dos pequenos grupos de pregação.
O modo como dirigiram os embates internos e externos (eleitorais) credenciou os pragmáticos à liderança sobre o partido, mesmo sob o manto do discurso esquerdista que parecia apontar para o desenlace oposto. Ao contrário da tradição de esquerda, Lula não aparecia comprometido com um programa particular, embora compusesse uma tendência específica interna, preferindo figurar como um democrata disposto a chancelar decisões coletivas e a manter a unidade partidária acima de tudo, evitando se colocar como efetivo chefe de partido — tarefa inglória em nossa tradição política — e delegando esse encargo a líderes de máquinas, como Dirceu, o que lhe possibilitou encarnar ainda mais eficazmente o papel de liderança de massas e pacificador interno.
O mesmo ocorreria no plano eleitoral. Já em 1989, o sectarismo antipeemedebista dos ortodoxos, que lhe roubaria preciosos votos no segundo turno contra Collor e lhe arranharia a imagem de líder político maduro, foi absorvido, assim como a retórica programática radical, bravatista e principista, como manifestação espontânea das bases partidárias, reforçando a imagem do líder democrático e tolerante que respeita a vontade dos militantes — o que hoje se constitui num ponto forte de sua imagem pública, apesar da imposição da candidatura presidencial ao partido.
Na eleição de 1994, a espetacular derrota sofrida de virada para FHC só aumentaria a sensação de descolamento do partido diante da realidade, sem que, então, sequer isso pudesse se converter em alguma vantagem à imagem política do líder. Sob os auspícios de seus economistas, que em sua maioria atacavam o Plano Real, os petistas persistiram na lógica da denúncia genérica contra o neoliberalismo e os planos econômicos anteriores, sem atentar para o amadurecimento de seus formuladores, sobretudo em relação ao Cruzado, e sem superar a miopia da esquerda dos anos 1960 que desprezava o tema da inflação em proveito do da inclusão, desconsiderando a complexa ligação entre ambos. De novo, sem melindrar a maioria partidária, Lula, apesar de perceber que o Real era um sucesso de público e que a maioria do eleitorado estava longe de entender os riscos macroeconômicos que ele embutia em termos de desindustrialização e aumento da dependência do país frente ao estrangeiro, tratou de tocar a campanha, mesmo amainando seu tom, provando sua capacidade de líder partidário “fiel às bases”.
O limite dessa estratégia amadureceria apenas após a segunda derrota cabal no primeiro turno para FHC, em 1998, quando Lula e seu grupo se convenceram de que o partido devia mudar de rumo e romper com o radicalismo político e sua tendência à resistência estéril ao sistema com base em axiomas doutrinários que, para além de sua não rara inconsistência teórica, eram pura e simplesmente incompreensíveis ao eleitor médio do país. Essa tomada de posição vem a público já no debate do II Congresso (novembro de 1999) através de Luiz Marinho, sob o argumento de que a unidade do partido não poderia mais ser garantida em detrimento de uma estratégia adequada de conquista do poder. O caminho para a Carta ao povo brasileiro (2002), na qual Lula admitiu, contra a retórica histórica do partido, a necessidade de acordos políticos e a continuidade dos programas bem-sucedidos dos governos anteriores, sobretudo o Real, estava aberto. O cálculo de oportunidade envolvido nessa opção se mostrou fundamental para a vitória de 2002, inaugurando, a partir de então, uma mudança importante na polaridade do pacto petista, agora baseado na supremacia da intuição dos pragmáticos sobre o discurso dos ortodoxos.
Desse modo, fica claro que a disjuntiva petismo x lulismo é inadequada para descrever a história do PT, sendo melhor utilizarmos a dicotomia lulismo x esquerdismo para entendermos as disputas em torno do projeto petista de poder, de modo a reconhecer tanto a legitimidade do petismo lulista quanto a importância da relação siamesa que este engendrou com a esquerda ortodoxa que vertebrou o PT, relação esta que está na base de todas as conquistas importantes do partido desde sua fundação.
O êxito inequívoco dessa trajetória, pelo menos em termos de conquista do poder político, deixa pouca margem para se esperar o fim do pacto petista por iniciativa de uma esquerda politicamente enfraquecida e ideologicamente esvaziada. Se o pragmatismo conservador de Lula, fadado a brilhar sobre o cenário político nacional, como líder da oposição ou da situação, não parece inclinado a uma fusão com as forças de centro, também o cenário desenhado por FHC, na hipótese do PT vitorioso, de um protagonismo independente de Dilma — numa espécie de reencarnação do Leonel Brizola dos anos 1960 — parece improvável à luz da unidade granítica do petismo e diante de um Lula, tal como um Vargas, ainda vivo, embora seja interessante como peça publicitária da campanha petista, visando, tal como em 2006, atrair o voto progressista.
Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do Lesce/UENF.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
Av. Barão do Rio Branco, 2390 - Centro - 36.016-310 - Juiz de Fora - MG - Fone: (32)2101-2000 (32)3691-7000
Hamilton Garcia (Sociólogo e Cientista Político)
•Gramsci-> www.gramsci.org
•controle social do Estado-> www.divida-auditoriacidada.org.br
•combate ao crime organizado-> http://protogenescontraacorrupcao.ning.com/
•Transparência Brasil-> www.transparencia.org.br/index.html
•A Voz do Cidadão-> www.avozdocidadao.com.br
•Desemprego Zero-> www.desempregozero.org.br/apresentacao.php
•APSERJ-> http://br.groups.yahoo.com/group/APSERJ
Quem dera que Lula fora engolido pelo comunismo, ainda mais pelo regisme stalinista!
ResponderExcluirQuem dera que o PT fosse revolucionário, de facto, e fosse realmente fruto de um pacto político-militar de enfraquecimento ao comunismo
Quem dera que o PT fosse tudo isso dito!
Infelizmente, o PT é apenas é o reformismo da esquerda com o pragmatismo do centro - Vide CIRCEU - ...
Abraços e belo texto, embora discorde!
Obrigado pelo seu comentário
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