Valor Econômico - 13/01/2012
Leia a seguir a entrevista com o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Valor: O senhor escreve que no Brasil o termo "ética" é confundido com "agir bem", mas temos no país uma ética, embora distorcida.
Roberto Romano: O elemento fundamental e mais perigoso da ética é que é um comportamento coletivo, aprendido e reiterado, mas inconsciente. Por ser automático, inculcado desde a primeira infância, depois reiterado na vida social, as pessoas agem em termos éticos inconscientemente. Para o bem e para o mal. O parentesco mais exato da ética é com o termo grego "hexis": postura. A ética resulta da postura. Se a pessoa não aprendesse a ter a postura correta na guerra, avançar e recuar, guerra estaria ameaçada. O esforço é para que a postura seja a mais correta possível desde a infância. Assim, quando o guerreiro estivesse na batalha, não teria de pensar em como usar o corpo. E a ideia de postura passou para os valores.
Valor: A analogia continua valendo?
Romano: Nossas sociedades estão cada vez maiores e mais velozes, os valores não conseguem ser transmitidos às novas gerações. Dou o trânsito brasileiro como exemplo. Desde a era Juscelino Kubitschek, no Brasil o certo é acelerar quando aparece um pedestre. Até então, a sociedade brasileira urbana era atlântica. No interior, havia o código rígido dos caipiras, descrito em livros de Antonio Candido e Maria Silvia Carvalho Franco: o tratamento cerimonioso, o decoro estrito. No litoral, havia procedimentos copiados da Europa. Com Juscelino, veio a rápida interiorização das urbes. A ética tem um tempo de maturação para ser socializada e definida. Desde os anos 70, ela está indefinida. É muita gente para se aculturar em novas regras: as múltiplas experiências éticas conflitantes precisam de tempo para formar uma cultura.
Valor: Se vivemos um período de adaptação, como sabemos que caminhamos para solidificar um código ético?
Romano: A solidificação de um paradigma ético conta com a concorrência da religião, das artes, dos esportes, da guerra etc. A partir daí, as pessoas agem automaticamente e a inconsciência é o que faz com que as pessoas muitas vezes ajam de uma maneira violenta, truculenta, corrupta, mas pensando que são boas. Acham que é bastante natural agir assim.
Valor: Daí, então, a frase de Fernando Bezerra Coelho sobre discriminar Pernambuco?
Romano: Há coisas até mais extremas. O mais corrupto dos corruptos, quando vê no jornal que é um corrupto, fica indignado. O que ele está fazendo é o certo. É típico no Brasil. E tem a questão dos municípios também, porque no Brasil não temos município de verdade. O município, tradição herdada de Roma, é a principal instância de poder local. É uma localidade que mantém sua autonomia. Os municípios do Brasil não têm autonomia, nem financeira, nem jurídica. Não são realmente municípios. O dinheiro vai dos municípios para Brasília e é redistribuído para as regiões de acordo com a força das oligarquias regionais. Enquanto houver centralização de impostos no Brasil, vai haver corrupção. O único jeito que tem o político de se reeleger é trazendo obras para a região. E o que é necessário fazer para conseguir trazer as obras? Isso que Fernando Bezerra faz e que todos os políticos, de esquerda e de direita, fazem. É dando que se recebe. Isso criou uma ética.
Valor: É uma corrupção compulsória?
Romano: Sim. Por mais que o eleitor pense que determinados escândalos são uma vergonha, pergunte a ele se ele não vota em alguém que traz obras para o município. É resultado do sistema superconcentrado de poderes no Brasil. A centralização criou essa ética. No século XIX, as cidades mais ricas do ciclo do café passavam décadas sem receber obras públicas, hospitais, curtumes, escolas. Aí os "homens bons" (um termo latino, "boni viri", que designa os ricos), que eram prefeitos e vereadores, emprestavam de seus bolsos para obras no município. O que aparecia para o cidadão comum? Que era um favor enorme. Aí aparece o ovo da serpente da ética brasileira: a promiscuidade entre o cofre público e o cofre privado.
Valor: E foi esse raciocínio que, ao se tornar hegemônico, fundeou a ética brasileira?
Romano: Os políticos não tiram mais dinheiro do bolso, mas se sentem no direito de tirar uma parcela do dinheiro público para se reeleger, porque são beneméritos da região. Para usar os termos do Bezerra, fazem o que tem de ser feito. Se um político, acostumado a esse modus operandi, ouvir "você é corrupto", dá um tiro na cara. Na cabeça dele, está fazendo o que é certo, natural, que é consagrado e vai dar votos.
Valor: Isso se aplica também ao caso do CNJ e demais instrumentos de controle?
Romano: O Judiciário brasileiro herdou a tradição centralista e absolutista. Tem estrutura própria, não responde diante da cidadania, os juristas se acham superiores. O maior insulto que um pode fazer a outro é "leigo". É defeito de nossos juristas, colocar-se como sapientes e o resto tem de calar a boca. Se for falar em eleição para qualquer jurista brasileiro, ele responde: "Que absurdo! Como um juiz vai ser influenciado pela cabeça do eleitor!" Como por a sacralidade da lei na mão de eleitor? É curioso que sobreviva o discurso do povo soberano aqui. Estranho soberano, porque todo mundo cospe em cima. Entra-se em qualquer repartição no Brasil tem um cartaz dizendo que quem desrespeitar uma autoridade está sujeito a tal e tal punição. Nunca se vê nenhuma referência a autoridades tendo de respeitar o cidadão.
Valor: Em termos de controle do comportamento público, não podemos ficar pelo menos um pouco animados com instituições de controle como o próprio CNJ, a CGU, a AGU, a PF?
Romano: Acho que sim. A CGU [Controladoria Geral da União] é excelente. Mas são mais de 5 mil municípios e a CGU tem a marca da centralização do Executivo. Já o CNJ, que veio no bojo da constituição de 1988, também é fundamental, mas é uma estrutura de cúpula e tem representantes de setores sem o poder Judiciário na mão. Uma juíza como Eliana Calmon, que merece todo apoio, pode agir como corregedora com tanta força porque ela também é juíza, ou seja, integrante do Judiciário.
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